"Você me escreve dizendo que não gosta mais dele. É verdade? Não se precipite em julgamento. Há períodos, mesmo na vida conjugal mais harmoniosa, em que não é o amor o que predomina. Seja paciente. O fato de você não se sentir apaixonada não quer dizer que tenha deixado de gostar dele. (...)"
(LISPECTOR, Clarisse. Só para mulheres: conselhos, receitas e segredos. Org.: Aparecida Maria Nunes; Rio de Janeiro: Rocco, 2008; p. 61.)
Ao publicar o texto acima, no Diário da Noite de 18 de julho de 1960, Clarisse Lispector, sob o pseudônimo de Ilka Soares, tentava aplacar a aflição pela qual certamente passava a leitora que a escrevera solicitando-lhe uns conselhos acerca de sua vida conjugal. O argumento de Lispector no decorrer de sua resposta é o de que a vida a dois está sujeita a passar por altos e baixos em função da rotina que, por vezes, se estabelece entre o casal. De acordo com ela, o cotidiano monótono induz os cônjuges a questionarem sobre seus sentimentos com relação ao outro, o que acaba por ser responsável por muitos conflitos nos relacionamentos. Prosseguindo com os conselhos, Clarisse comenta que talvez a leitora esteja passando por um período de “excesso de tranqüilidade” em seu casamento e que é normal isso resultar em “pensamentos mais desanimadores”, como os que ela está tendo naquele momento.
A angústia da leitora de Clarisse certamente é a mesma que acomete muitos daqueles que iniciam uma vida conjugal, pois, é certo que a convivência diária vai se revelando menos atraente com o passar do tempo. O que era novidade se transforma em algo comum, trivial. E as coisas que antes passavam despercebidas, tornam-se extremamente evidentes e incômodas. As manias, os defeitos, os excessos, os gostos duvidosos que inicialmente se compreendia e se tolerava, agora irritam tanto, que você se pergunta onde estava com a cabeça quando concordou em viver com alguém tão diferente da sua personalidade. O “até que a morte os separe”, nessas horas, perece ser uma eternidade angustiante. Então você começa a se questionar sobre seu sentimento por esse indivíduo que deixa a tampa do vaso sanitário levantada, que não gosta de ir ao cinema porque não suporta ouvir as risadas e as conversas paralelas, que assiste aos jogos de futebol rigorosamente às quartas e aos domingos e, não satisfeito, ainda assiste aos comentários que são exibidos em vários canais no domingo à noite, enfim, são inúmeras as situações que o dia a dia vai fazendo você perceber e refletir sobre se vale a pena continuarem juntos ou se o amor que existia no início do namoro ainda sobrevive.
Afinal, você o ama? Quer realmente viver com essa pessoa? Ele é o homem da sua vida? Está mesmo disposta a passar por cima de tudo aquilo que a incomoda nele? Ou seria melhor, então, jogar tudo para o alto e ir atrás de alguém que não a irrite tanto? Enfim, são questões que fazem você viver um conflito interno muito grande. Mas aí você começa a lembrar dos momentos felizes que passou com ele, de o quanto ele é companheiro, de como ele a conforta nas ocasiões mais difíceis e de como ele se preocupa se você não está estudando como deveria para a monografia ou para passar naquele concurso público que tanto almeja. Tudo isso a faz pensar acerca dos conselhos que Clarisse dera a sua leitora naquele ano de 1960 e que ainda cabe perfeitamente nos dias de hoje. Às vezes desejamos algo muito fantasioso, distante da nossa realidade, como na novela onde o casal acorda com os rostos incrivelmente maravilhosos, a mocinha com o cabelo alinhado, o mocinho com a bandeja de café na mão e um sorriso lindo. É tudo tão perfeito... Mas devemos nos ater à vida real. Não que uma vez ou outra ele não possa surpreender com uma ação desse tipo, mas temos que lembrar que a vida a dois não nos reserva a felicidade ou o amor em tempo integral. Existem também os momentos de dificuldades, de conflitos. E nessas horas precisamos exercitar a tolerância, afinal, o que é a convivência senão um exercício diário de tolerância e respeito ao próximo? Concluo, portanto, com os sábios conselhos de Clarisse, que recomenda a sua leitora: “não estrague sua vida com sonhos impossíveis e falsos”.